September 21, 2019
Dia 8: Bourg St Pierre (CH) - Grand St Bernard (2400m) - Aosta (IT)
Manhã fresca mas soalheira. Hoje será o grande dia da passagem aos 2400m de altitude to colo do Grand St Bernard mesmo na linha de fronteira com a Itália. Faltam 12 km até ao topo mas as inclinações andam em média pelos 15%.
Arrumo tudo e faço café com o último café que me resta. Felizmente vou para Itália onde o café é excelente e a preços de gente normal.
Quando tenho quase tudo pronto os meus vizinhos, um casal de Suíços que estavam numa auto-caravana perguntam-me para onde vou e se quero um café. Aceito e falamos um pouco sobre a minha viagem. Eles estavam a preparar-se para sair. Iam dar um passeio a pé pela montanha e regressar a casa ainda hoje. Era o seu último dia de férias. Saíram de mochila às costas ainda antes de mim.
Faço uma última inspecção ao local do acampamento a confirmar que não ficava nada para trás, verifico que a tenda, presa em cima do porta bagagens de trás está toda encharcada, como se tivesse acabado de sair da máquina de lavar. O saco de cama, na zona dos pés também está molhado porque esteve a noite toda em contacto com o tecto da tenda. Em Aosta terei que arranjar forma de secar isto tudo pensei.
Faço-me ao caminho e rapidamente começo a entrar nos túneis e zonas de protecção anti avalanche da estrada. O trânsito é intenso e há muitos camiões nos dois sentidos. Não tenho ciclovia e como vou a subir vou bastante lento. Esta parte não tem graça nenhuma. Fiz uma ou outra paragem para umas fotos mas não descansei enquanto não deixei a estrada principal em direcção ao cimo do vale.
A estrada segue em direcção ao túnel que atravessa a fronteira mas está vedado a ciclistas. Estes são obrigados a sair e seguir para o colo do Grand St Bernard onde a estrada não tem mais do que 100 m a direito e as inclinações não dão tréguas.
A paisagem é fantástica, a progressão demasiado lenta e para ajudar sopra vento contra que desce o vale e vai trazendo neblina de Itália para a Suíça. Nesta luta entre as pernas, o vento e o cérebro lembro-me de uma frase lida num artigo de cicloturismo que diz: para os ciclistas só há dois tipos de dias, os sem vento e os com vento contra.
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O vento que me empurra para trás também trás ar mais frio. Tenho que parar e vestir um casaco corta vento mas todos estes dissabores se dissipam com o regalar da vista que tenho à minha volta. As curvas da estrada serpenteiam ao lado de um ribeiro de água que corre pelo vale abaixo semeado de trilhos pedestres.
O meu objectivo está lá longe e não há meio de o vislumbrar. A cada curva da estrada segue-se outra. A páginas tantas passa por mim, também a subir um outro ciclista mas daqueles em modo tour de France. Bonjour e courage e lá vai ele ligeiro como uma lebre por aí acima.
Eu luto com uma bicicleta de 14 kg, mais 18 kg de carga e um motor de 74 kg e pouca potência para tanto kilo.
Numa curva da estrada surge um outro cicloturista. Estava excitadíssimo por se cruzar com mais um da sua espécie. Era um Polaco que vinha de Roma e ia para o Reino Unido. Tinha subido pelo lado italiano na noite anterior, tendo feito a subida quase toda de noite e dormido num refugio de emergência que existe já do lado suíço. Eu de facto tinha-o visto a caminhar com a bicicleta pela mão, fora de estrada em direcção ao meu caminho. Vinha do seu refúgio onde tinha passado a noite.
Tirou umas selfies e filmou-se a ele e a mim com a gopro. Ele ia descer e contava chegar a Lausanne ainda hoje. Desejou-me boa sorte e disse-me que só faltavam 2 km mas que iam ser os 2 km mais difíceis de toda a minha viagem: Enjoy! E lançou-se estrada abaixo.
Ainda fiquei a observa-lo até que um segundo ciclista passa por mim. Achei que era hora de me encher de coragem e enfrentar o monstro de 2 km que ainda me esperava.
Não tinha mais recurso no conjunto de 30 velocidades que a minha Annie tem. Já vinha com a avózinha e o carreto maior engatado desde que tinha deixado o túnel. Agora era só mesmo paciência e resiliência.
Lentamente lá fui vislumbrando o fim. O topo é basicamente um convento e um hotel, ligados por uma passagem superior. Há um café/restaurante, uma loja de souvenirs e um museu do Grand St Bernard. Os frades que vivem no convento são criadores de cães São Bernardo.
Este foi o dia D da viagem e por isso tinha decidido trazer a t-shirt da David Vaz Associação vestida. Tenho a certeza que ele estaria em êxtase se pudesse fazer isto. Provavelmente teria chegado um par de horas antes de mim mas seria a companhia ideal. Esta foi a forma de o trazer comigo.
Perdi a conta ao número de vezes que nos sentámos juntos a fazer planos abstractos sobre coisas destas e de como seria tão bom fazermos um passeio de bicicleta em autonomia... nunca fizemos de bicicleta mas fizemos muitos outros.
Fui à loja de souvenirs e comprei uma prenda para cada um dos miúdos: um canivete suíço para o Gaspar e um São Bernardo em peluche para a Olívia.
O tempo do lado Italiano estava cinzento e o vale completamente tapado de neblina. O termómetro marcava 6ºC.
Vesti tudo o que tinha. Corta vento, luvas, gorro, óculos e lancei-me montanha abaixo.
As mãos não podiam deixar os travões e os olhos a estrada. Manter-me nos 50 km/h era tarefa difícil tal era a inclinação. A bicicleta pedia para ser deixada à solta mas as curvas apertadas e o piso molhado não me deixavam descansar. Fui-me deixando entusiasmar nas rectas e apertando nas curvas consciente de que uma queda ali seria trágica.
Apesar das camadas de protecção, o facto de não estar a mexer nenhum músculo para além dos que estão nas falanges usadas para travar fazia com que o frio se entranhasse por todo o lado forçando-me a uma paragem num café na beira da estrada.
Estava em Itália, podia finalmente ligar os dados no telemóvel, avisar a família do feito, beber um café e aquecer o corpo.
Pedi um capuccino e uma fatia de tarte de cereja. Enviei as fotos da passagem no Grand St Bernard à família e à irmã do David, aqueci as mãos no café e preparei-me para mais 40 km a descer. Até Aosta seria sempre assim. Agora eram a pedaleira grande e o carreto pequeno que estavam a a ser usados. Aqui nos Alpes não há meio termo, é de extremo a extremo. Por isso é que as bicicletas aqui não têm pedaleira do meio! pensei com ar de gozo.
Voltei a meter os headphones, premi play nos “Of monsters and men” e fiz-me ao caminho.
Pedalar ao som de música tem um efeito incrível. É como se estivéssemos num filme. A paisagem e o movimento fundem-se com a música, elevando o momento a outro nível. A música funciona como o topping em cima do gelado.
Cheguei a Aosta e fui directo ao hotel/pensão que tinha reservado. Era uma coisa muito simples, negócio familiar de gente simpática que até me ofereceram a garagem na cave para guardar a bicicleta durante a noite.
O ritual repete-se: no quarto e em 5 minutos o caos emerge com tudo o que está devidamente compactado nos sacos a ser espalhado na cama, na cadeira, pendurado na maçaneta da janela, na porta da casa de banho, no chão enfim, por tudo quanto é canto. Meias, chinelos, t-shirts, acessórios é tudo colocado onde dá mais jeito.
O saco de cama, que não vai ser preciso esta noite, é posto a secar à janela. A roupa suja atafulhada num saco a um canto, a roupa limpa, que já não era muita, noutro. A tenda iria para o terraço do hotel onde há um estendal gigante.
Tomo um duche, visto uma t-shirt lavada e vou visitar Aosta.
Tinha a tarde toda livre para cirandar por Aosta sem planos nem horários. Esta seria provavelmente a última paragem interessante até Turim. A viagem pelo vale depois de Aosta não se adivinhava nada de espectacular por isso valia a pena aproveitar bem a tarde em Aosta.
Comi pizza, bebi café, li o meu livro, comprei fruta e café Bialetti, puré de castanhas para trazer para casa, deambulei pelas ruas e praças de Aosta, até que a noite chegou e fui dormir.
Today's ride: 50 km (31 miles)
Total: 469 km (291 miles)
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